Mary del Priore é uma conhecida historiadora brasileira, ex-professora da USP e da PUC-RJ, e tem se dedicado à história do amor. De suas pesquisas resultou o trabalho História do amor no Brasil, publicado pela editora Contexto. Também escreveu uma História das crianças no Brasil e uma História das mulheres no Brasil (ambos, pela Contexto), tendo recebido, por essa última obra, o Prêmio Jabuti. Apresentando uma reflexão rica e fartamente documentada, Del Priore toma a sério a reflexão sobre o imperativo do amor, que, “como outros imperativos – comer, por exemplo –, está inscrito em nossa natureza mais profunda”. A obra percorre o Brasil Colônia, o século XIX e o século XX, mostrando como a concepção romântica de amor – idealizadora do encontro entre duas pessoas – é inteiramente recente, apesar de uma ênfase erótica explícita já em formas literárias medievais, renascentistas e modernas. Como conclusão, Mary del Priore assume posições muito instigantes, em defesa, por exemplo, de uma concepção tradicional de amor, diagnosticando a angústia da juventude diante da liberdade sexual e denunciando uma ditadura moderna do gozo. Gentilmente, ela concedeu uma entrevista à CULT, cujas respostas mais significativas para o dossiê deste mês apresentamos aqui.
CULT: Apesar do caráter recente da visão romântica do amor, a senhora aponta para a exploração do erotismo na literatura francesa do século XVI. Mas Portugal, desse ponto de vista, teria vivido um atraso, associando, ainda, prazer e pecado. Em que consistiu esse atraso?
MARY DEL PRIORE: Teorias que consideravam o desejo sexual uma doença estão presentes em vários textos médicos portugueses desde o começo do século XVI. Havia quem dissesse, como o escritor João de Barros, em 1540, que o sentimento apaixonado “abreviava a vida do homem”, minguando ou secando os mebros do enamorado. Que doenças decorriam da paixão: ciática, dores de cabeça, problemas de estômago ou dos olhos. A relação sexual, por sua vez, emburrecia, além de abreviar a vida. Ele concluía: só os “castos vivem muito”. Os portugueses também estiveram cara a cara com uma ars erotica que usava e abusava de afrodisíacos. Dela, contudo, só levaram para Portugal a possibilidade de ver em tudo pecado ou doença! O contato imediato dos lusos com as Índias Orientais colocou-os em contato com perfumes vindos tanto da China quanto do subcontinente asiático, e com afrodisíacos largamente utilizados naquela parte do mundo: a cannabis sativa, bangue, maconha ou ópio. Esse era usado como excitante sexual capaz de duas funções: agilizar a “virtude imaginativa” e retardar a “virtude expulsiva”, ou seja, controlar o orgasmo e a ejaculação. No século XVIII, a idéia de que o amor é uma doença não faz os afrodisíacos desapar dos manuais de remédios, mas se recomendam, cada vez mais, os anafrodisíacos. Definindo-os como “aqueles remédios que ou moderam os ardores venéreos ou mesmo os extinguem”. É o caso do agnus castus, ou agnocasto, a mais eficaz das plantas antieróticas. Existiam várias outras substâncias com a mesma reputação de esfriar ou anular o desejo sexual, como a cânfora, por exemplo.
CULT: O Brasil seria um herdeiro do atraso português?
MARY DEL PRIORE: O Brasil herdou costumes que vieram da Europa, de Portugal, da Igreja e de outras instituições. Mas não foi uma simples transferência. Houve adaptações. A miscigenação proporcionou, por exemplo, um repertório linguistico que influiu na maneira de dizer o amor. Uma viajante francesa, Adéle Toussaint-Samson, no século XIX, sintetizou: “A língua brasileira, com todos os seus diminutivos em -zinha, -zinhos, tem uma graça toda crioula, e jamais a ouço sem descobrir um grande encanto; é o português com sua entonação nasal modificada. Todas as suas denguices lhe caem bem e dão à língua brasileira um não-sei-quê que seduz mais ao ouvido do que a língua de Camões”. Outro exemplo vemos no Romantismo, momento de eclosão da poesia afro-brasileira. Nela, homens como Laurindo José da Silva Rabelo faziam versos os mais apaixonados. Em Suspiros e saudades, ele canta a interpretação romântica de sua dor, mas uma dor mestiça, feita de saudades à moda portuguesa. Já em Cruz e Souza, a busca subjetiva da cor branca é o tema de toda a obra poética. Quando o poeta ama, o objeto desse amor é a “mulher, ‘da cor nupcial da flor de laranjeira’, e loura, ‘com doces tons de ouro’”. Para Tobias Barreto, o amor era um sentimento unificador: andava por onde quisesse não se detendo nas barreiras do preconceito de cor.
CULT: Seria possível resumir em etapas mais ou menos homogêneas a cronologia do amor no Brasil? Como?
MARY DEL PRIORE: Não há etapas homogêneas em história, mas momentos de mudanças e permanências coexistentes. Por exemplo, o século XIX introduziu a ideia do amor romântico. As pessoas começam a ler romances onde heróis e heroínas buscam um casamento por amor e um final feliz para suas histórias. Isso era novo. Ao mesmo tempo, nas elites, o casamento arranjado com parentes ou amigos era uma constante. Isso era arcaico. As fórmulas coexistiam. Daí começarem os raptos de noivas que se recusavam a casar com candidatos impostos pela família, preferindo fugir com os escolhidos do coração. É como se tivéssemos passado de um período em que o amor fosse uma representação ideal e inatingível (a Idade Média), para outra em que vai se tentar, timidamente, associar espírito e matéria (o Renascimento). Depois, para outro, em que a Igreja e a Medicina tudo fazem para separar paixão e amizade, alocando uma fora, outra dentro do casamento (a Idade Moderna). Desse período, passamos ao Romantismo do século XIX, que associa amor e morte, terminando com as revoluções contemporâneas, momento no qual o sexo tornou-se uma questão de higiene, e o amor parece ter voltado à condição de ideal nunca encontrado.
CULT: Na abertura de seu livro, a senhora subscreve as palavras de Luís Felipe Ribeiro: no passado, as pessoas “não davam”, mas se davam; hoje, elas “dão”, mas não se dão. Na conclusão, a senhora afirma que a liberdade amorosa – típica de nosso tempo – tem contrapartidas: a responsabilidade e a solidão. E termina apontando para um lado positivo da tradição, pois esta, defendendo a família e a procriação, seria uma fonte de profunda emoção. Gostaríamos de ouvi-la um pouco mais sobre a vivência do amor no mundo contemporâneo.
MARY DEL PRIORE: Considerando as transformações pelas quais passou a sociedade brasileira, poderíamos avançar o seguinte: aquilo a que se assistiu, ao longo dos tempos, foi uma longa evolução que levou da proibição do prazer ao direito ao prazer. Fomos dos manuais de confessor, que tudo interditavam, aos casamentos arranjados, policiados, acompanhados passo a passo por familiares zelosos. E desses ao impacto das revoluções, que, ao final dos anos 60, exportaram mundo afora lemas do tipo “Ereção, insurreição” ou “Amai-vos uns sobre os outros”, sem contar o movimento hippie, com o lema “Paz e Amor”. Desde então, o amor e o prazer se tornaram obrigatórios. O interdito se inverteu. Impôs-se a ditadura do orgasmo forçado. O erotismo entrou no território da proeza e o prazer tão longamente reprimido tornou-se prioridade absoluta, quase que esmagando o casamento e o sentimento. Passou-se do afrodisíaco à base de plantas para o sexo com receita médica, graças ao Viagra. Passou-se da dominação patriarcal à liberação da mulher.
Entre nós, durante mais de quinhentos anos, os casamentos não se faziam de acordo com a atração sexual recíproca. Eles mais se realizavam por interesses econômicos ou familiares. Entre os mais pobres, o matrimônio ou a ligação consensual era uma forma de organizar o trabalho agrário. Não há dúvidas de que o trabalho incessante e árduo não deixasse muito espaço para a paixão sexual. Sabe-se que entre casais, as formas de afeição física tradicional – beijos e carícias – eram raridade. Para os homens, contudo, as chances de manter ligações extra-conjugais, eram muitas. O resultado dessa longa caminhada? Especialistas afirmam que hoje queremos tudo ao mesmo tempo: o amor, a segurança, a fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade. Fundado exclusivamente no sentimento que sobrou do amor romântico, o sentimento mais frágil que existe, o casal está condenado à brevidade, à crise. Mais. A liberdade sexual é um fardo para os mais jovens. Muitos deles têm nostalgia da velha linguagem do amor, feita de prudência, sabedoria e melancolia, tal como viveram seus avós. Hoje, a loucura é desejar um amor permanente, com toda a intensidade, sem nuvens ou tempestades. Numa sociedade de consumo, o amor está supervalorizado.
O sexo tornou-se uma nova teologia. Só se fala nisso e se fala mal, com vulgaridade. Sabemos, depois de tudo, que o amor não é ideal, que ele traz consigo a dependência, a rejeição, a servidão, o sacrifício e a transfiguração. Resumindo: existe um grande contraste entre o discurso sobre o amor e a realidade de vida dos amantes. O resultado? Escreve-se cada vez mais sobre a banalização da sexualidade e o desencantamento dos corações, enquanto o amor segue uma coisa sutil e importante que continua a fazer sonhar, e muito, muitos homens e mulheres.
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